A estátua é de 1957 e sempre foi alvo de contestação |
Como a fogueira de Borba Gato nos mostra que esquerda precisa de mais Ho Chi Minh
No fim de semana, no dia dos atos contra Bolsonaro, a estátua de Borba Gato foi queimada por um grupo chamado Revolução Periférica. O ato organizado, com aproximadamente 30 pessoas, foi assumido pelo grupo. A estátua sempre foi alvo de questionamentos. Foi objeto de pedido formal de retirada em 2020, negada pela Prefeitura Municipal de São Paulo e pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo, com argumentação reacionária, segundo os autores do pedido.
Em breve, publicarei dois livros que abordam explicitamente, não como objeto principal, esse assunto. Um livro se chamará Discurso sobre o branco: notas sobre o racismo e o apocalipse do liberalismo e o outro terá o título de O nascimento de uma nação: como o liberalismo produziu o proto-fascismo brasileiro. Se tudo der certo, serão publicados neste ano.
A ideia de ambos é compreender o nacionalismo brasileiro, sobretudo desde a Independência. Não vou entrar no mérito dos livros, mas da parte em questão: Borba Gato. Como se sabe, Borba Gato viveu e morreu antes da Independência; portanto, a sua vida não entrou nos livros. O que entrou foi o momento em que Borba Gato foi alçado a herói, por quem e por quê.
Borba Gato surge no século XX, na prática, como resultado de uma construção supremacista dos paulistas não somente sobre os negros e nativos, mas sobre as outras elites regionais. A província de São Paulo só assumiria alguma relevância política em meados da segunda metade do século XIX. Em 1922, Júlio de Mesquita Filho, proprietário do jornal O Estado de São Paulo, publicou um manifesto na Revista do Brasil, dirigido por Monteiro Lobato, chamado A Comunhão Paulista. A Comunhão Paulista foi um movimento, infelizmente pouco conhecido pela esquerda, de formação de uma elite intelectual que seria responsável por guiar o país ao desenvolvimento, por serem naturalmente superiores às outras elites e aos outros estados. Bom, mas onde entram os bandeirantes? Entram na ideia de que o Brasil teria sido fundado por eles, sendo a elite de 1920 a herdeira natural da “bravura” dos verdadeiros fundadores do país. Logo, o próprio grupo do O Estado. Disse Júlio de Mesquita Filho no manifesto:
“A realização deste legado do passado há de, por força, mobilizar-lhe todas as regiões. (...) Somos fortes, somos ainda dignos do passado das bandeiras, justamente porque às enganosas vitórias da política militante, sabemos ainda preferir as rudes vitórias que pontilham a história da nossa evolução. As sadias emoções da vida livre da lavoura, das tentativas audaciosas de que todos os dias temos notícias, empolgam a visão segura e afoita do paulista, desviando-o da estagnação acabrunhadoramente niveladora dos nossos partidos políticos. Nos momentos capitães da história nacional, de São Paulo sempre partiu a palavra que haveria de decidir dos destinos da nacionalidade”.
Lógico que há muito mais detalhes. A Província de São Paulo, fundado por Júlio de Mesquita, o pai, era escravocrata e sobrevivia com anúncios de vendas de escravizados e de capitães do mato. O filho acreditava que a abolição, da forma como foi feita, teria sido um erro que fez entrar “a circular no sistema arterial do nosso organismo político a massa impura e formidável de 2 milhões de negros subitamente investidos das prerrogativas constitucionais” (A Crise Nacional). Foi nesse momento que essa elite, após a Revolta de 1932 e a sua aproximação com Getúlio, se tornara a elite hegemônica do estado, substituindo a velha oligarquia cafeeira, combalida pela crise de 1929. A USP foi criada em 1934 para criar essa elite intelectual paulista ou “paulistanizada” que dirigiria o país.
Foi nesse momento que essa elite passou a lutar bravamente contra a imigração de nordestinos, vistos como seres que “enegreceriam” o estado novamente, após a grande imigração europeia, justamente para substituir o "elemento africano". Por isso, na falta de opções, preferiam os japoneses (e aqui há uma longa história desde o Congresso Agrícola de 1878 que não cabe aqui), um meio-termo entre negros e brancos na visão supremacista e cientificista do liberalismo da época, sobretudo após a vitória japonesa sobre os russos, em 1905. Desde esse momento, tudo deveria ser referenciado naquilo que foi criado para ser tipicamente paulista: os bandeirantes. Rodovias, escolas, rádios e TVs com essas referências são os detalhes desse processo. Estátuas, idem!
Portanto, a ascensão dos bandeirantes deve-se a um processo semelhante de ascensão dos farroupilhas em Porto Alegre na década de 1930, que, em 1835, combateu os farroupilhas. Assim como os farroupilhas foram alçados para ligar os sul-rio-grandenses a um passado mitificado, dando-lhes superioridade, os paulistas fizeram o mesmo. E era o comum da época, pois todo Estado-Nação formado no século XIX tem uma dimensão racial, como mostram Alemanha e os Estados Unidos (Domenico Losurdo). É o papel que o germanismo cumpriu para o nazismo e os peregrinos escolhidos cumpriram para os norte-americanos brancos.
Portanto, queimar ou não estátuas é uma disputa de projeto de poder, pois as estátuas, sobretudo do Borba Gato, representam um projeto de poder. Borba Gato é uma representação racializada e neocolonial. Fiquei realmente impressionado ao ver pessoas e organizações de esquerda, ou autoproclamadas, condenarem o ato, simplesmente o relegando ao identitarismo. Até poderia haveria uma discussão sobre o dia, mas jamais sobre o conteúdo, especialmente com argumentos baseados na “arte” e “memória”, como se fossem entes desprovidos de relações de poder.
Quando aconteceu, por óbvio, fui ver a posição do... Estadão. Afinal, o negócio queimado é um legado familiar também. Para a minha surpresa, à luz daquilo que se deve esperar, o Estadão não esperneou. Nem a Folha. Penso que ambos perceberam que não é mais possível manter o mito, e, de certa forma, disputam agora com um discurso supostamente mais “plural”. Dória se restringiu a uma nota genérica sobre “vandalismos”. Os bolsonaristas, segundo os críticos de esquerda alarmados, chamaram o ato de terrorista: é o esperado no jogo. Não preciso dizer que a posição dos pais da ideia me fez ficar mais surpreso ainda com essas organizações e pessoas de esquerda. Esperava ler algo assim vindo da família Mesquita.
Obs: um dos livros será gratuito, pois, provavelmente, será por uma editora universitária. Neste livro há uma análise mais detalhada de 20 páginas sobre a construção da elite paulista a partir de 1920 e sua relação com o anticomunismo. Esse livro é a síntese de um curso que ministro chamado Estudos críticos sobre o conservadorismo brasileiro pelo IFSP. Há também o brilhante estudo, facilmente conseguido no google, da Irene Cardoso, A Universidade na Comunhão Paulista: o projeto de criação da Universidade de São Paulo. Recomendo fortemente a leitura desta última obra.
Leonardo Sacramento é professor e presidente da Aproferp em Ribeirão Preto
Nenhum comentário:
Postar um comentário