Páginas

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

O relato de um professor do povo Ticuna sobre a seca e as queimadas no Estado do Amazonas

 

Beto Fernandes Torres denunciou o abandono ao povo Ticuna.
Foto: Filipe Augusto Peres 

Relato aconteceu na última segunda-feira (2) durante o oitavo Congresso Internacional de Jornalismo de Educação, em São Paulo

Na segunda-feira (2), em mesa promovida pela Jeduca durante o 8º Congresso Internacional de Jornalismo de Educação, realizada na Fecap, em São Paulo, durante a mesa que debateu as relações entre crises climáticas e educação, Beto Fernandes Torres, professor da Escola Municipal Indígena Marechal Rondon e ex-gestor da Escola Estadual Indígena Cacique Manuel Florentino Mecuracu, ambas localizadas no município de Benjamin Constant (AM), compartilhou sua experiência sobre o impacto das mudanças climáticas em sua comunidade indígena no Amazonas. Ele destacou questões como a seca, a falta de merenda escolar e a fome enfrentada por seus alunos. Mediada pela jornalista Paula Ferreira (Estadão), a mesa ainda contou com as presenças de Danilo Moura (Unicef) e Raquel Teixeira (Secretária  Estadual de Educação do Rio Grande do Sul).

Em sua fala, Beto expressou tristeza ao falar sobre a situação do Alto Solimões, região onde vive, afetada pela estiagem. O professor relatou as dificuldades enfrentadas para chegar ao Congresso devido às condições climática.

"Eu sou do Amazonas, 1.121 km a Manaus. Eu trabalho como professor na área indígena. Não sei se eu vou expressar muito aqui, porque para falar da situação, da nossa realidade, é muito triste, é muito emocionante. A nossa região, que nós chamamos do Alto Solimões, é triste. Recentemente, quando eu vim e viajei para cá, eu saí dia 27 de agosto. Eu cheguei em Tabatinga, dia 30, viajando. A estiagem, a seca, ela afetou muito a nossa região. Eu enfrentei tantas dificuldades para chegar hoje aqui”

e destacou que a seca afetou diretamente a comunidade, gerando problemas como a falta de merenda escolar, que não chega, levando os alunos a irem para a escola sem tomar café na sua casa. Indo para escola e voltando sem comer nada.

“A educação da nossa região, onde eu moro, comunidade regional, que tem mil e novecentos e cinquenta alunos do ensino médio, o ensino fundamental, de primeiro ao quinto, sexto ao nono ano. Esses alunos é o aluno que sofre o clima. Falta de merenda. A merenda não chega à comunidade. O aluno vai pra escola sem tomar café na sua casa. Indo pra escola e voltando sem comer nada”.

O professor compartilhou um caso de morte em sua aldeia, onde um aluno de seis anos faleceu por falta de alimentação. A falta de apoio do poder público municipal e estadual foi apontada por Beto como um dos principais motivos para a situação precária enfrentada pela comunidade indígena.

Recentemente, quando eu vim para cá, faleceu um aluno de seis anos, o motivo dessa situação era o meu aluno, eu estava trabalhando na sala de aula do Antônio. Ele saiu e perguntou|: 
"Professor, eu estou com fome". 
Eu disse, "sim, mas como assim?:" o nome dele é Paulo. 
"Como, Paulo, você está com fome? 
"De manhã eu não tomei café. Vim pra aula. Minha mãe foi pra roça plantar mandioca, banana pra sobreviver. 

Aí eu deixei ele na casa dele. Acompanhei ele. Eu fui e levei na casa dele. Quando eu deixei na casa dele não tinha ninguém. A mãe e o pai foram pra roça. Deixei ele lá. Eu voltei para a escola, conversei com a diretora da escola, perguntei se tem alguma merenda e ela disse que não tem, não chegou merenda na escola. Eu falei para o professor, "e agora"? 
Trinta minutos, quarenta minutos, um rapaz foi lá em casa, o professor.
 "O Paulo..., aconteceu um acidente com ele". 
"Sim. Como?" 
Ele estava vomitando, passando necessidade. Quando eu fui lá, realmente o Paulo, que é o meu aluno, vomitou. E... quando aconteceu isso, eu chamei a mãe dele. Ele foi para a roça, correu atrás do pai, da mãe dele. Quando eu voltei, o menino já estava morto. Chamei a enfermeira lá da aldeia para fazer o diagnóstico, que realmente esse aluno faleceu, que não tinha tomando café, não comeu nada, na minha aldeia.

e reiterou que a morte poderia ter sido evitada se as autoridades municipais de Benjamin Constant entregassem a merenda escolar.

“E isso acontece. O governo municipal não leva as merendas. Nós sofremos por consequência disso”.


Escola Municipal Indígena Marechal Rondon
Imagem: Google Earth

O Projeto e o desenvolvimento curricular a partir do diálogo com a comunidade local


Diante desse cenário, Beto ajudou a criar um projeto de jovens comunicadores na aldeia, com o objetivo de conscientizar a população sobre a crise climática e buscar soluções para a falta de alimentos..

“Então, o que nós fizemos? Qual o projeto que eu fiz lá da minha aldeia? Eu chamei 20 jovens, nós criamos na aldeia um projeto de jovens comunicadores. Esses jovens comunicadores, a gente trabalha para conscientizar os alunos, conscientizar os pais. Como para conscientizar? Cada fim de semana eu reúno os jovens comunicadores, eu oriento ele para ir de casa em casa, levando um pouquinho de alimentação. Não é só da minha comunidade, são 28 comunidades afetadas por esse clima”.


Torres afirmou durante a mesa que também ajudou a desenvolver o currículo “Formas Próprias de Educar”, o qual foi enviado para as autoridades locais e estaduais, mas não obteve resposta satisfatória por parte do poder público.

“Então, nesse caso, eu como professor, conversei como gestor da escola da minha aldeia, Será como é que nós podemos trabalhar em cima dessa crise climática que nós estamos enfrentando hoje? Aí nós criamos o currículo Formas Próprias de Educar. Essas Formas Próprias de Educar, que nós nos reunimos com os professores, eu sentei com a diretora e disse, "Olha, a gente tem que, pelo menos, ajudar os nossos alunos, nossos parentes que estão sofrendo nessa estiagem". 
Criamos o currículo Formas Próprias de Educar. Forma que nós podemos educar os nossos alunos. Forma de nós orientarmos os nossos alunos, nossos parentes, para que ele não , deixe seus costumes de cuidar dos seus filhos, cuidar das suas roças, cuidar dos seus plantios. Nós colocamos o nosso currículo. E nós mandamos esse nosso plano curricular para o nosso município, que é o Benjamin Constant. A secretária do nosso município de Benjamin Constant, nosso plano, para inserir no currículo do município. Diz que esse pensamento que nós temos não está inserido no currículo do município onde eu estou. A rejeição que nós temos é muito grande no nosso município”.

Mais negligência

Beto ainda relatou que o governo do Amazonas também foi consultado e que, também, negou-lhes a inserção do projeto ao currículo.

“A gente mandou para a Secretaria do Estado do nosso Amazonas, Manaus, que a gente mandou também essa. Até o momento, os governos do Estado não responderam a nossa demanda, a nossa solicitação”.

Falta d’água

O professor voltou a destacar que, afetados pelo clima, pela pobreza do solo, empobrecido pelo modo de produção alimentar capitalista, alimentos comuns da dieta indígena como banana e mandioca já não crescem, gerando insegurança alimentar.

“Falando de clima, hoje, recentemente, os nossos parentes, eles plantaram. O clima lá da minha região, a gente planta mandioca, banana, mas só que ela não cresce mais”.

A falta d’água  também é uma constante na região, o que obriga a população indígena a viver em condição insalubre.

“Eu estive conversando com alguns jornalistas. Perguntei à mãe desse aluno:

‘A senhora vai levar essa água?’
‘Sim’. 
‘Por quê?’ 
‘Para lavar roupa, lavar prato, fazer comida’. 
Eu disse, ‘meu Deus, não, você não pode fazer isso. Você não pode levar essa água suja’. 
Ela falou, ‘professor, mas onde que a gente vai tirar a água?’ 
É triste essa situação que eu tô falando, é a realidade. Eu presenciei isso na minha comunidade. E tem mais comunidade que eu andei. Tá sofrendo essa necessidade”.

O professor chamou atenção para a importância de apoio e de autoridades que reconheçam a realidade vivida pelos povos indígenas, relatou a seca do rio Amazonas

"Como nós somos povos Ticuna, como a colega estava falando da primeira mesa, eu estava sentado ali. Chorei. Porque a gente precisa de ajuda. Nós precisamos de ajuda, de apoio, de autoridade. Para que essa autoridade veja a nossa realidade, a situação que nós estamos passando. Aí eu chamei a mãe.

 ‘Mãe, bora?’ 


Eu fui para casa, tinha galão de água deste tamanho. Eu entreguei para ela, para que ela possa fazer suas alimentações e café para os seus filhos. Então, essa situação que a gente está levando hoje aqui, contar um pouco da nossa história, que nós estamos vivendo na nossa região. O nosso rio Amazonas, eu acho que é o terceiro maior rio do Amazonas. Hoje, esse rio que nós temos, ele secou. Há três anos nós estamos vivendo isso, ninguém sabe o que vai acontecer com a gente. Ninguém sabe o que vai acontecer com o povo ticuna da região”.


e, destacando a perseguição enfrentada pela comunidade, lembrou o massacre de Ticunas, cometido por latifundiários,para comprovar que a opressão e a negligência às questões, à população indígena, sempre foi uma constante histórica na região.

“Porque a gente sofre, a gente é perseguido também pelas autoridades. Não sei se vocês viram alguns depoimentos sobre o massacre que aconteceu em Capacete. Foi morrer 28 ticunas. Por quê? É por causa das terras, devido às plantações. Tudo isso, o que a gente falou aqui. É uma realidade que nós estamos enfrentando, do município de Benjamin Constant."

O Blog O Calçadão enviou questionamentos à Secretaria Municipal de Educação do município de Benjamin Constant e à Secretaria Estadual de Educação do Amazonas referentes às falas de Beto Torres e, até o momento, não obteve resposta. Tendo-a, a transcreverá no corpo desta matéria.

O que informa a imprensa

Matéria do portal G1, de 24 de junho deste ano, consta que o Ministério Público Estadual recomendou ações preventivas contra a seca e exigiu da prefeitura de Benjamin Constant informar as medidas a serem adotadas até o dia 1º de julho.

Notícia da página da prefeitura de Benjamin Constant-AM, de 19 de julho, consta que o governo municipal enviou um ofício ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e para a Defesa Civil do Amazonas alertando sobre o risco de desabastecimento na região da tríplice fronteira em virtude da vazante do Rio Solimões, uma vez que Com o nível das águas baixando drasticamente, as embarcações têm dificuldade para transportar produtos básicos para o interior.

Matéria do site jornalístico Brasil de Fato, de 27 de agosto de 2024, informa que as comunidades seguem isoladas.

O Blog O Calçadão enviou questionamentos à Secretaria Municipal de Educação do município de Benjamin Constant referentes às falas de Beto Torres sobre o currículo escolar, mas até o momento não obteve resposta. Tendo-a, a transcreverá no corpo desta matéria.

O Amazonas enfrenta crise ambiental sem precedentes em 2024, por causa da seca e queimadas, isolando municípios e comunidades, impactando mais de 330 mil pessoas no estado, segundo a Defesa Civil.


Nenhum comentário:

Instituto Território em Rede critica falta de transparência e diálogo em projeto de lei que pode condenar áreas de APPs

  Instituto pede que o PLC seja debatido Instituto argumenta que o PLC 31/2024 não teve discussão suficiente e nem envolvimento adequado da ...