1
quando a opressão
transparece além-muros do morro
quando o sangue jorra na calçada da planície
atrapalha o almoço em frente à tv
da classe média branca
pessoas brancas
(como eu)
antes de voltarem as costas ao povo negro
à rotina
enjoadas pelo azedume da comida
escrevem poemas indignados
2
na Penha
os gritos vieram da mata
mães subiram descalças
carregando lençóis
porque os corpos
não cabiam nas mãos
cento e dezenove mortos
entre eles dois irmãos
abraçados
com as digitais arrancadas
o governo disse:
“foi um sucesso”
a polícia disse:
“os mortos reagiram”
e a luz da cidade
apagou-se por vinte e quatro horas
em São Paulo
a 23 de Maio parou
faixas estendidas gritavam
“pela vida do povo negro”
enquanto carros buzinavam impacientes
com o atraso do expediente
na ONU
Guterres pediu investigação
no STF
Moraes marcou audiência
dezoito pontos para esclarecer
a lógica do abate
no Planalto
um homem tomou posse
disse que a cabeça do crime
não mora na favela
mora na Faria Lima
os cactos de Bandeira
hoje têm forma de fuzil
as raízes cortadas pelo Bope
a seiva escorrendo no asfalto
e o homem, meu Deus!
segue catando
restos de dignidade
entre as ruínas do país
3
nós não dormimos no meio da batalha…
nós, que dormimos,
somos os assassinos
sequer fazemos amor desatentamente
apenas olhamos a TV com impaciência
até a notícia sumir
até os corpos serem esquecidos
ocultados em novas nuvens
ou matagais
como bicho...

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