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quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Poema antibrechtiano

 


1


quando a opressão

transparece além-muros do morro

quando o sangue jorra na calçada da planície

atrapalha o almoço em frente à tv

da classe média branca

pessoas brancas

(como eu)

antes de voltarem as costas ao povo negro

à rotina

enjoadas pelo azedume da comida 

escrevem poemas indignados


2


na Penha

os gritos vieram da mata 

mães subiram descalças

carregando lençóis

porque os corpos

não cabiam nas mãos


cento e dezenove mortos

entre eles dois irmãos

abraçados

com as digitais arrancadas 


o governo disse:

“foi um sucesso” 

a polícia disse:

“os mortos reagiram”

e a luz da cidade

apagou-se por vinte e quatro horas


em São Paulo

a 23 de Maio parou 

faixas estendidas gritavam

“pela vida do povo negro”

enquanto carros buzinavam impacientes

com o atraso do expediente


na ONU

Guterres pediu investigação 

no STF

Moraes marcou audiência

dezoito pontos para esclarecer

a lógica do abate 


no Planalto

um homem tomou posse

disse que a cabeça do crime

não mora na favela

mora na Faria Lima 


os cactos de Bandeira

hoje têm forma de fuzil

as raízes cortadas pelo Bope

a seiva escorrendo no asfalto


e o homem, meu Deus!

segue catando

restos de dignidade

entre as ruínas do país


3


nós não dormimos no meio da batalha…


nós, que dormimos,

somos os assassinos


sequer fazemos amor desatentamente


apenas olhamos a TV com impaciência 

até a notícia sumir

até os corpos serem esquecidos

ocultados em novas nuvens

ou matagais


como bicho...

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