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sábado, 20 de novembro de 2021

O AMOR NÃO TEM COR, TEM OUTRAS QUESTÕES - Por Isabela Silva


Lembro da primeira vez em que ouvi essas palavras de Claudete Alves* no Programa Espelho, apresentado por Lázaro Ramos. Afinal, a solidão da mulher negra é mais do que um assunto velado na sociedade. Nós, que somos enxergadas como “o outro do outro", nas palavras de Grada Kilomba**, passamos despercebidas em afetos e direitos ao longo de nossa história.

Tal falta de reciprocidade, no entanto, não nos aflige apenas no sentido romântico. Não se trata de solidão, no singular, mas de SOLIDÕES. Nós, mulheres negras, além de não sermos compreendidas como “mulheres para casar” e constituir família, também não nos enxergamos nos espaços de poder, não estamos nas entrevistas de emprego mais cobiçadas, não predominamos no ensino superior e dificilmente diferimos das estatísticas que demonstram que mulheres negras são as mais atingidas pela desigualdade econômica, racial e de gênero.

Ao analisar mais de 1.400 casais inter e intrarraciais, Claudete verificou em sua pesquisa que homens negros que ascenderam econômica, intelectual ou artisticamente, escolheram, em sua maioria, parceiras não negras para constituir família. E que tal fenômeno não ocorreu apenas nos estratos em que o homem negro ascendeu, mas em todas as classes sociais, do centro à periferia de São Paulo.

No Brasil, a historicidade do homem negro o leva a negar sua fenotipicidade, fruto do racismo estrutural e de uma brutal violência contra nossos corpos, nossa ancestralidade e nossa cultura. Ainda sim, são as mulheres negras que, mais uma vez, são renegadas à solidão, aprofundando cicatrizes seculares.

Já as mulheres negras participantes da pesquisa escolheram, em sua maioria, parceiros negros para se relacionarem. Tal escolha não é apenas fruto da persistência dessa mesma historicidade que aflige homens negros – e que é brutal em relação às mulheres negras –, mas também pela resistência e luta pela reprodução de sua identidade étnico-racial.

Façamos o exercício da pergunta:

Você, homem branco e negro, quantas vezes já se relacionou com – não apenas por uma noite, mas escolheu como companheira – uma mulher negra? E você, mulher negra, quantas vezes já se relacionou com – não apenas por uma noite, mas escolheu como companheiro – um homem negro?

Certamente, a maioria dos homens tiveram poucas parceiras negras (embora o número seja maior entre homens negros) e, da mesma maneira, mulheres negras tiveram poucos parceiros – sejam eles brancos ou negros. Não há como avançarmos enquanto sociedade se não partirmos da mesma consciência, sem reconhecer e continuar negando a realidade. Sem uma atuação ativa em busca de conhecimento e novas práticas permaneceremos distantes: não travando as mesmas lutas e também não nos reconhecendo.

Enquanto mulheres brancas estavam lutando pelo direito ao voto e pelo direito de trabalhar, nós, mulheres negras, já trabalhávamos há séculos como escravas e lutávamos pelo direito de sermos livres. Apenas escrachando o racismo, reconhecendo seus privilégios e questionando reproduções sistêmicas em nossa sociedade poderemos avançar em direitos e afetos. Apenas reconhecendo o outro como igual, livrando-se de preconceitos, é que caminharemos na busca efetiva pela igualdade.  Tais atitudes, no entanto, não podem ser apenas discursos para encantar e ser encantado; devem ser atos cotidianos, com a reafirmação de novos valores para a sociedade como um todo.

Quanto a nós, mulheres negras, não esperaremos caladas, invisibilizadas e sozinhas por um futuro que não virá sem o tomarmos por nossas mãos! Nem mesmo as tentativas de apagar e negar as violências que nos acometem serão suficientes para nos silenciar e nos manter em sofrimento. Seremos as primeiras a ocupar ruas, Câmaras e todos os lugares que quisermos em nome de todas as Dandaras, Luanas, Marielles, Claudetes e Marias deste país que sonharam um mundo sem solidões e que nos reconhecesse como gente.


*Claudete Alves é mestre em ciências sociais pela PUC-SP. Foi vereadora de São Paulo por dois mandatos, autora do Projeto de Lei que instituiu o dia da consciência negra na cidade de São Paulo.

**Grada Kilomba é escritora, psicóloga, teórica e artista interdisciplinar portuguesa reconhecida pelo seu trabalho que tem como foco o exame da memória, trauma, gênero, racismo e pós-colonialismo.


2 comentários:

Ariadne disse...

Que texto forte!!

Unknown disse...

Excelente texto Isabela Silva!

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