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sexta-feira, 18 de outubro de 2019

O Brasil dos evangélicos no poder

Nunca tiveram tanto protagonismo, é neles que Bolsonaro aposta sua sobrevivência.

Análises simplistas e reducionistas supõem que o presidente Jair Bolsonaro se aproximou de líderes religiosos, especialmente evangélicos, e que pastores mandaram seus fiéis votarem nele. A doutora em Ciências da Comunicação, Magali Cunha, reconhece que isso acontece, mas destaca que é só a ponta de um complexo processo. “Bolsonaro foi muito bem instruído no discurso que alimentou a pauta de costumes de sua campanha, afetando fortemente o imaginário evangélico conservador calcado na proteção da família tradicional, na heteronormatividade e no controle dos corpos das mulheres”, observa.
Ou seja, há um movimento de orientação de Bolsonaro para que ele possa aderir a pautas que são caras aos fiéis e esses, por sua vez, veem nele a capacidade de implementação de sua visão política. “Foi muito caro a muitos evangélicos imaginar ter no poder maior do país alguém defensor de suas pautas, como ‘homem simples, do povo, que fala o que pensa’ e isto parece ter sido um propulsor do voto que descarregaram em Bolsonaro”, analisa Magali. Para ela, o que se dá realmente é a formação de alianças de interesses mútuos. “Pensar assim é bem diferente de pensar que lideranças religiosas comandaram o voto”, reitera. E acrescenta: “no caso Bolsonaro, é preciso pensar no alcance do imaginário como um elemento determinante ao apoio evangélico e católico conservador”.
Evangélicos: proteção da família, heteronormatividade e controle do corpo das mulheres.Evangélicos: proteção da família, heteronormatividade e controle do corpo das mulheres.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Magali ainda analisa como a base desse eleitorado dá o lastro para o governo em momentos de crise. “Se o governo Bolsonaro é um desastre e tem crises de diplomacia interna e externa, ele se apega a estes apoios que acabam sendo importantes para a manutenção de sua imagem como líder político”, diz. No entanto, reconhece que as pesquisas já apontam certa retração no apoio de fiéis evangélicos. Situação que pode ainda se agravar caso o governo não deslanche em pautas que vão além dos costumes, pois, embora represente grande parte do ideário cristão conservador, não há o que segure por muito tempo uma economia em queda, por exemplo. “Vamos ver até quando isto dura, uma vez que não há projetos de governo sedutores, a não ser a distribuição de cargos, que têm limites”, resume.
Por fim, Magali também destaca que esse movimento de associação de evangélicos com a política não é um fenômeno recente. Nem mesmo a aproximação com Bolsonaro é tão recente. “Ela teve início em 2013 no apoio dele ao pastor Marco Feliciano (à época PSC/SP) na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, e se consolidou, depois, em 2016, na filiação de Bolsonaro ao PSC”, recorda. Além, disso, evangélicos têm sido ouvidos por presidentes desde Fernando Collor, tendo inclusive grande espaço em governos petistas. “A diferença para Bolsonaro é que, mais do que uma articulação política, há a construção de imagem religiosa atrelada ao governo para assegurar o apoio do segmento. Lula se recusou a estar no altar na Igreja Universal e Edir Macedo se ressente disso”, pontua.
Magali do Nascimento Cunha é doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo – USP, mestra em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO e graduada em Comunicação Social, Jornalismo, pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Ela ainda realizou estágio pós-doutoral em Comunicação e Política, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, da Universidade Federal da Bahia – UFBA. É coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação e Religião da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – Intercom, também integra a Associação Internacional Mídia, Religião e Cultura (International Association Media Religion and Culture) e a Associação Mundial de Comunicação Cristã (World Association for Christian Communication, WACC). Entre as obras publicadas, destacamos Religião no noticiário: marcas de um imaginário exclusivista no jornalismo brasileiro (E-Compós, Brasília, v. 19, p. 1-21, 2016) e Mídia, Religião e Cultura: percepções e tendências em perspectiva global (Curitiba: Prismas, 2016).
Evangélicos veem Bolsonaro como ‘homem simples, do povo, que fala o que pensa’.Evangélicos veem Bolsonaro como ‘homem simples, do povo, que fala o que pensa’.
Confira a entrevista.
Muitos analistas avaliam que o voto religioso, em particular o voto evangélico, teve um peso decisivo na eleição do presidente Jair Bolsonaro. A senhora concorda com esse tipo de análise?
O voto evangélico em Jair Bolsonaro representou, sim, um peso significativo nas eleições de 2018 e continua sendo uma importante base de apoio para o governo federal. A aproximação com o segmento evangélico foi uma estratégia que rendeu resultados muito positivos à campanha de Bolsonaro. Ela teve início em 2013 no apoio dele ao pastor Marco Feliciano (à época PSC/SP) na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, e se consolidou, depois, em 2016, na filiação de Bolsonaro ao PSC, simbolizada num batismo no Rio Jordão, em aliança com as Assembleias de Deus, apesar de formalmente continuar católico.
Bolsonaro foi muito bem instruído no discurso que alimentou a pauta de costumes de sua campanha, afetando fortemente o imaginário evangélico conservador calcado na proteção da família tradicional, na heteronormatividade e no controle dos corpos das mulheres. Foi muito caro a muitos evangélicos imaginar ter no poder maior do país alguém defensor de suas pautas, como “homem simples, do povo, que fala o que pensa” e isto parece ter sido um propulsor do voto que descarregaram em Bolsonaro.
Evangélicos desistem de Parada para Jesus e vão para Parada Gay.Evangélicos desistem de Parada para Jesus e vão para Parada Gay.
Algumas pesquisas recentes estão mostrando que o presidente já perdeu parte da aprovação que tinha dos seus eleitores. É possível estimar se há mais evangélicos que aprovam ou desaprovam o governo e as declarações polêmicas do presidente?
A queda na aprovação do governo Bolsonaro na última pesquisa Datafolha (final de agosto) mostra 29% de bom/ótimo contra 38% de desaprovação [ruim/péssimo]. Entre evangélicos são 37% de aprovação contra 27% de desaprovação, sendo que entre neopentecostais, a popularidade do presidente chega a 46%, com rejeição de 20%. É fato que há uma queda de aprovação entre evangélicos, que já contou com 61% de bom/ótimo em pesquisa Ibope de março. Mas o apoio neste segmento ainda é significativo.
Isto se deve à aproximação mantida com este grupo religioso, assegurada nos discursos sobre costumes, na participação em eventos de igrejas e, especialmente, na concessão de cargos e promessa de outros a lideranças evangélicas. Tanto é que, com popularidade em queda, em setembro, Bolsonaro intensificou encontros com líderes evangélicos, participação em eventos religiosos e discursos moralistas pela família brasileira. Se o governo Bolsonaro é um desastre e tem crises de diplomacia internas e externas, ele se apega a estes apoios que acabam sendo importantes para a manutenção de sua imagem como líder político. Vamos ver até quando isto dura, uma vez que não há projetos de governo sedutores, a não ser a distribuição de cargos, que têm limites.
Alguns pesquisadores dizem que a eleição de Bolsonaro representa a chegada dos evangélicos ao poder Executivo. É isso mesmo ou não?
É isso mesmo! O poder Executivo vinha sendo ocupado desde o governo Dilma Rousseff, quando o primeiro ministério foi concedido a evangélicos: o da Pesca, com o senador da Igreja Universal do Reino de Deus – IURD Marcelo Crivella sendo alçado à liderança da pasta. Era uma ocupação significativa, mas não muito expressiva numericamente. Depois, a IURD também ocupou, durante o governo Dilma, o Ministério dos Esportes, com George Hilton à frente.
No governo Michel Temer o mesmo ritmo de ocupação foi mantido. Já com Bolsonaro os militares ocupam de forma expressiva e significativa o governo em vários cargos do primeiro escalão, mas dividem este poderio com evangélicos. A pastora pentecostal Damares Alves ganhou a direção do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O Ministério da Casa Civil foi ocupado pelo luterano Onyx Lorenzoni e o Ministério do Turismo é conduzido pelo membro da Igreja Maranata Marcelo Álvaro Antônio. O ministro da Advocacia Geral da União é o pastor presbiteriano André Luiz Mendonça e o recém-nomeado ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, é um batista. São cinco evangélicos no primeiro escalão do governo federal, fora o número significativo de alocados no segundo, sendo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos o mais ocupado por evangélicos.
A estratégia de dar conta de boa parte da diversidade evangélica nestes cargos foi bem traçada, revelando habilidade no trato com este grupo religioso. Soma-se a isto o fato de Bolsonaro ter construído uma imagem religiosa de tal forma que muita gente acredita que ele é evangélico.
Pesquisas indicam retração no apoio de fiéis evangélicos a Bolsonaro.Pesquisas indicam retração no apoio de fiéis evangélicos a Bolsonaro.
Como a senhora avalia a aproximação do presidente Bolsonaro com a Igreja Universal, em particular com Edir Macedo?
A IURD e seu líder maior Edir Macedo têm um projeto político bastante nítido desde sua origem. A ocupação da política institucional é parte da existência da igreja bem como a ocupação das mídias. Percebe-se pelo histórico deste projeto que esta igreja estará sempre ao lado de quem estiver no poder ou com perspectiva de alcance dele. Foi assim com Fernando Collor, na primeira investida grande da igreja que lhe rendeu cadeiras no congresso nacional. Foi assim durante os governos FHC, assim se deu com Lula, em períodos anteriores demonizado, depois com Dilma Rousseff, com Temer e não seria diferente, em 2018, com a surpreendente ascensão de Bolsonaro. Se um governo de esquerda retornar ao poder, o movimento será o mesmo.
* Magali do Nascimento Cunha foi entrevistada por Patricia Fachin, no IHU Online.

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