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terça-feira, 24 de março de 2020

Livros e vírus - Antônio Alberto Machado

Professor Antônio Alberto Machado
Publicado em 24 de março de 2020

            NÃO é de hoje que cientistas, profetas e autores de ficção desconfiam que, uma hora ou outra, a Terra poderá ser palco de uma catástrofe pandêmica, causada por algum vírus. Um armagedon de dimensões bíblicas. Tal hipótese sempre esteve mais ou menos no radar dessa turma que fica tateando o futuro.

             É por isso que os cientistas já andavam de orelha em pé com o coronavírus – desde o surto do ebola, que é raro por aqui mas matou muita gente na África. Aliás, uma das hipóteses que os cientistas cogitam para o apocalipse – além da explosão do nosso sol, aquecimento ou congelamento da Terra, pancada de asteroide ou guerra nuclear – é o extermínio da humanidade por um vírus altamente transmissível e letal.

           Em filmes, livros de ficção científica e romances, a catástrofe provocada por um micro-organismo desses também é tema recorrente. Alguns filmes são famosos, como, por exemplo, o Epidemia (1995), dirigido por Wolfgang Petersen (que teve Dustin Hoffman no elenco); e Contágio (2011), dirigido por Steven Soderbergh (com Matt Damon, Jude Law e Kate Winslet).

             A literatura, da mesma forma, é pródiga nessa temática. Poderia lembrar aqui um punhado de romances. Mas logo de cara me ocorrem dois deles, que li, reli e estou treslendo: A peste, de Albert Camus, publicado em 1947, e o Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, que veio a público (ou a lume, como costumam dizer os portugueses) em 1995 – junto com o ebola no Congo.

           Um parêntese: depois que estourou a epidemia do novo coronavírus, esses dois livros entraram para a lista dos mais vendidos na Europa. Na França, Itália e Reino Unido o livro de Camus dobrou em vendas; Saramago vem logo a seguir – dois clássicos virando best-sellers, caindo (ou subindo) no gosto da massa.

              A peste, de Camus, conta a história da cidade de Oran, na Argélia, assolada por uma estranha epidemia causada por um vírus desconhecido e letal, proveniente do rato. (O rato camusiano e o morcego do coronavírus, dois mamíferos roedores, já não sei se será só uma coincidência!) O romance do franco-argelino Camus também foi considerado por muitos uma metáfora da ocupação nazista durante a Segunda Grande Guerra.
            A história contada por Saramago diz respeito a uma epidemia virulenta de cegueira, que se alastra por toda a cidade. As pessoas se contaminam umas às outras e vão ficando cegas. Uma “cegueira branca” em que veem a luz mas não enxergam nada. Essa “treva branca” seria uma metáfora para a “crise do nosso tempo” – ao mesmo tempo uma crise da razão, ética e espiritual.

         Os dois romances, embora tratando de epidemias, têm mensagens diferentes. Enquanto o livro de Camus, refletindo sobre a precariedade e o absurdo da condição humana, suscita a ideia de que a solidariedade é a única coisa que poderia dar algum sentido à nossa existência; Saramago não vê sentido nenhum e vislumbra um mergulho no caos – a humanidade estaria caminhando para a barbárie, para o apocalipse, inclusive moral.

              Embora diversas, e aparentemente opostas, no fundo, são duas mensagens que não se excluem mutuamente – em meio ao caos saramaguiano pode ser que haja espaço para a solidariedade camusiana; e isso, por si só, já seria suficiente para dar algum sentido ao absurdo do fracasso humano.

            No geral, os ficcionistas têm um certo talento (ou dom) para enxergar o futuro – senão não seriam ficcionistas. É curioso como eles veem mais à frente (vejam o livro do George Orwell, 1984 – uma impressionante antevisão do futuro). Mas não é exatamente esse teor profético que me chama a atenção nesses livros; prefiro mais as lições, os ensinamentos que se podem tirar dessas obras apocalípticas.

          Por exemplo, uma leitura cruzada de A peste e Ensaio sobre a cegueira permite entender um pouco de muita coisa.

             Dá pra ver o quão frágil é a vida e quão absurda é a condição humana (Camus). Mas, em meio à fragilidade e ao absurdo camusiano, pode ser que haja algum sentido – ou seja, alguma lógica solidária no caos de Saramago. Se, por um lado, estamos cegos (“Cegos que, vendo, não veem”), como diz Saramago; por outro, no caos da cegueira podemos enxergar ao menos a solidariedade – que talvez seja o que nos restará, como diz Camus.

            E pode ser também que o absurdo e o caos das pandemias nos façam enxergar mais coisas ainda. Talvez agora enxerguemos o ebola, que matou muita gente na África e a gente nem ligou. Talvez o absurdo de uma crise sanitária e econômica nos faça ver que não basta ser solidário na morte, tem que viver na solidariedade. Parados por causa do vírus, talvez enxerguemos que a correria não leva a nada. Enfim, talvez tudo isso nos faça enxergar a nossa própria cegueira. Talvez!


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