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quarta-feira, 28 de julho de 2021

Conselho Tutelar e Direitos Humanos - Por: Celso Correia

                               

                             Qualquer desqualificação do Conselho Tutelar pode derivar de um desconhecimento mínimo legal sobre o mesmo e suas atribuições, mas pode, indiretamente, ser a expressão da continuação camuflada do ataque aos direitos humanos e à democracia participativa.

                        Para um melhor aproveitamento da reflexão aqui proposta é interessante se ter um contato sobre a gênese histórica da expressão Direitos Humanos e a ligação que a mesma tem com o dia a dia da vida. O Blog o Calçadão tem importantes publicações sobre esse tema. Destacam-se duas que podem ser lidas aqui e aqui.

            

         A Lei Federal 8.069 de 13 de julho de 1990 que inaugura o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) prevê a existência do órgão denominado Conselho Tutelar para que zele pelos direitos previstos na própria lei (artigo 131). Composto por cinco membros escolhidos pela população local para um mandato de quatro anos, os Conselheiros Tutelares eleitos passam a fazer parte de um órgão integrante da administração pública local que trabalharão, pari passu, sobre diversos preceitos e exigências da lei com o Poder Executivo, o Judiciário e o Ministério Público.

                        O Conselho Tutelar faz um trabalho cotidiano de atendimento à criança e ao adolescente, que se desdobram em aplicação de medidas aos seus pais ou responsáveis legais como fornecimento de orientação e encaminhamentos a serviços e programas de proteção à família e atendimentos em saúde, mas também aplicando medidas mais severas como a advertência ou suspensão ou destituição do poder familiar. (Art. 129). Adicionalmente o Conselho Tutelar constitui-se como órgão de destinação obrigatória das situações avessas aos direitos da criança e do adolescente de forma geral, como os casos de suspeitas ou confirmação de castigo físico ou maus-tratos (Art. 13) e de forma específica, por exemplo, receber comunicação dos dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental sobre situações de alunos com muitas faltas injustificadas ou com alta repetência. (Art.56)

                        Uma visão mais sistêmica de convivência e trabalho entre todos os atores envolvidos na garantia, manutenção e expansão dos direitos das crianças e adolescentes também está presente no ECA. Preceitua a lei que todos os entes da federação devem atuar de forma articulada e integrada na elaboração e execução das políticas públicas entre Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública, Conselho Tutelar e Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente e entidades não-governamentais e promover espaços intersetoriais e multiprofissionais para elaboração de planos de ação conjunta na proteção, promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente.(Art. 70-A, incisos II e VI)

                        Até aqui nota-se como o Conselho Tutelar atende e recebe a demanda e como auxilia na proposição de modelos de atendimento. No entanto, como se verá a seguir, em nenhuma hipótese se pode imputar ao Conselho Tutelar a ineficácia de atendimento à criança e ao adolescente, tendo o mesmo cumprindo todas as suas obrigações. Entre as atribuições do Conselho Tutelar a que mais se destaca por conta da demanda é a promoção da execução de suas decisões através do requerimento de serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança.(Art. 136, inciso III, alínea a). O ECA, além de apresentar linhas e diretrizes da política de atendimento, detalha a classificação do regime de atendimento das entidades de maneira a cercar todas as possíveis necessidades de atendimento à criança e ao adolescente. (Art. 90). É justamente nesse ponto que reside o calcanhar de Aquiles do atendimento. Em diversos municípios ou algum atendimento não existe, ou se existe não está adequadamente dimensionado em recursos humanos e financeiros diante da demanda e/ou não está integrado com outros programas que possam atender o leque de necessidades da criança e do adolescente.

                        A palavra direitos recomeçou a ganhar notoriedade junto ao processo de transição política da ditadura civil-militar para o regime democrático nas décadas de setenta e oitenta, tendo seu significado atrelado, num primeiro momento, aos direitos individuais, a saber, os direitos políticos. Concomitantemente, a palavra foi alargando seu significado através de reivindicações por creche, habitação, transporte etc demarcando o processo de concretização de direitos sociais através da mobilização e participação política. A Constituição do Brasil de 1988 e o ECA, em 1990 são produtos históricos sociais-legais que colocaram em forma de lei os direitos humanos em novo e mais alto patamar na esteira desse forte período de movimentação política popular.

 

                        A elite nacional e seus representantes políticos, atentos a esse desenrolar de fatos, logo diagnosticaram duas situações intimamente ligadas e caras a esse grupo: o aparecimento da democracia participativa na gestão do Estado e, consequentemente, a alocação de recursos públicos com amarras legais (carimbados) destinados à políticas públicas voltadas, principalmente, para a camada mais pobre da população em detrimento dos destinos outrora privilegiados e quase nada republicanos. No final dos anos oitenta e início dos noventa as ideias neoliberais já pairavam nos discursos dessa elite que o utilizou como contra-ataque a expansão de direitos. O presidente José Sarney já em 1987 declarava para a imprensa que a Constituição de 1988, como estava sendo redigida, tornaria o país ingovernável. Essa foi a retórica pelo flanco da disputa orçamentária. No flanco da disputa de corações e mentes da população em geral surgiu a associação da expressão direitos humanos à defesa de privilégios para bandidos e as mobilizações e articulações por direitos sociais à desordem social. Transformar direitos humanos propositadamente numa celeuma foi e é um mecanismo de conseguir junto à população frear os avanços que poderiam se constituir em benefícios de cidadania para essa mesma população.

                        O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e nesse contexto sócio-econômico é comum que o atendimento do Conselho Tutelar seja majoritariamente marcado pela presença de crianças e adolescentes advindos de núcleos familiares empobrecidos e desassistidos. Apesar da  saúde e educação públicas terem se estruturado e facilitado o acesso nas últimas décadas existe um contingente considerável de pessoas que ficam nas rebarbas das políticas públicas de atacado, por assim dizer, e necessitam de programas e serviços mais específicos para terem oportunidade de se restabelecerem. Sendo assim, um requerimento de atendimento especializado para essa camada da população realizado pelo Conselho Tutelar configura-se em boa medida num acinte aos monopolistas sociais. Para muitos, oferecer atendimento psicopedagógico para uma criança e adolescente pobre da periferia é quase análogo ao oferecimento de atendimento médico especializado para detento. Um luxo, um desperdício de recursos públicos, pois os primeiros sujeitos são considerados os potenciais futuros frequentadores do sistema carcerário (com probabilidade muito aumentada se for negro) e os segundos ou não têm recuperação ou já deveriam ter sido sentenciados com a pena capital.

                        Há quem advogue pelo preenchimento dos cargos ao Conselho Tutelar exclusivamente por concurso. No entanto, os direitos humanos de maneira geral e os direitos da criança e do adolescente de maneira específica necessitam para se desenvolverem e se aperfeiçoarem da vitalidade, da atualidade, e da presença democrática caracterizada pela alternância de ocupação dos espaços instituídos pela sociedade civil organizada ou pelas lideranças comunitárias que as representam.

                        Dessa maneira o Conselho Tutelar configura-se como espaço democrático legalmente previsto que ainda tem um papel importante a cumprir no aprimoramento da legislação, dos serviços e programas que atendam a infância e a juventude brasileira. A democracia não é um valor em si e se só se constitui como real se for capaz de promover justiça social e distribuição de maneira mais equânime dos frutos do trabalho social gerado. Sendo assim o Brasil ainda é um país com processo de redemocratização em curso e o Conselho Tutelar é espaço fundamental a ser valorizado por outros atores e instituições.

*Celso Correia da Silva Júnior é amigo e colaborador do Blog O Calçadão

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